Ativistas comemoram legalização do aborto na Argentina — Foto: RONALDO SCHEMID/AFP
Com um pouco de exagero,o conservadorismo brasileiro pode ser equiparado ao fundamentalismo iraniano. Há um tradicional entusiasmo pátrio com as belezas naturais e a simpatia tropical da população. Mas isso soa apenas cosmético. No espelho,sem maquiagem e com as olheiras matinais,estamos muito mal na foto.
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Em outra mão,o conservadorismo se reflete nos índices de violência. Os comunicados da ONU,dada nossa diminuta relevância mundial,pouco se referem às chacinas habituais ocorridas nas cidades brasileiras ou no campo e só citam por vezes o trágico extermínio dos povos originários. Reflexo do descaso planetário provocado pela reconhecimento de que o Brasil é de fato um lugar estranho. Haja vista que a extrema direita agora deseja tirar a praia dos pobres. Vai-se o fio dental,e ganha-se um pastor.
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Foram míseros os momentos da História em que o brasileiro esteve tão ameaçado pela religião. Nem por isso ocorreu aumento da tolerância com a tragédia dos pobres. A sociedade cindida parece desejar jogar da caçamba os desvalidos e colocá-los na cadeia. Ou matá-los. Na frase definitiva de Christopher Lasch,vivemos uma democracia das elites. Para consolidar o poder,lançam mão do Estado contra a população. Cada vez mais as leis oprimem os desguarnecidos.
O financiamento da religião hoje ocorre não de olho no amparo emocional ou no afeto humanitário,mas tão somente a reboque da catequização de todas as almas. Isso não pode acabar bem. A ideia de sociedade presume a convivência de diversas opiniões e diferenças,em que a maioria deve civilizadamente respeitar as minorias. Em caso contrário,as crenças de alguns caminham para o aprisionamento da nossa gente — e todos serão obrigados a usar véus. Mesmo os incréus,como estão afamados os que não comungam (ops!) sob o dízimo dos cultos.
Numa régua simples,o Brasil aos poucos se transforma no Irã da América Latina. Em 1925,o físico Albert Einstein,em sua visita à região,já notava que o Uruguai tinha modernidade nos costumes e trato bem maior se comparado ao Brasil. Enquanto na terra de Noel e Guimarães Rosa se criminalizam muitas das liberdades individuais,países vizinhos,sem serem ateus ou agnósticos,muito pelo contrário,superaram a imaginária lei divina escrita pelos suspeitos de sempre. Naquelas terras,são os homens de carne e osso que legislam. Tanto as sociedades locais,seja por meio de plebiscitos ou de seus políticos,quanto o Judiciário reconheceram os direitos individuais,a despeito de crenças religiosas ou fundamentalistas.
Argentina,Uruguai e Colômbia estão à frente em vários princípios morais. Em 2022,a Colômbia descriminalizou o aborto até 24 semanas. Dois anos antes,a Argentina fez o mesmo para gestação até 14 semanas. E o Uruguai? Aprovou a interrupção em 2012. A Cuba de Fidel,em 1968. O Chile aguarda somente sua regularização. No mundo,77 países,com diferentes nuances,já atualizaram favoravelmente suas legislações.
No Brasil dos pastores,a Câmara aprovou na semana passada a urgência de proposta de lei que piora ainda mais a legislação contra o aborto. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante,o aborto,se realizado após a 22ª semana,estará equiparado ao homicídio. O prazo vale também para as vítimas de estupro. Ainda segundo a redação,a vítima de violência sexual terá uma condenação superior à do estuprador. Sóstenes é pastor,bolsonarista raiz e foi crítico acerbo do isolamento social. Acabou internado numa UTI com Covid-19. Chegou à Câmara pelo voto de 65.443 exultantes almas.
Também o combate às drogas escande o fundamentalismo brasileiro se comparado à América Latina. O Uruguai — de novo o Uruguai,caro Einstein! — tornou-se o primeiro país no mundo a legalizar a produção e consumo da Cannabis. Em 2015,foi a vez de o Chile aprovar seu uso terapêutico. A descriminalização ocorreu nos anos seguintes na Colômbia,no Peru e na Argentina. Na contramão,discute-se no Congresso,relatado pelo bolsonarista Ricardo Salles,a condenação pelo porte de qualquer quantidade de entorpecentes.
Assim como o aborto,a criminalização da Cannabis penaliza a população pobre — o que sempre é lembrado pelo presidente do Supremo,Luís Roberto Barroso. O Brasil desponta como terceira maior população carcerária do mundo,e um terço das penas se dá pela lei de drogas. Como ressalta o ministro,em geral são jovens negros. Vale lembrar,as maiores vítimas de homícidio nos índices de violência no Brasil.
Não é de espantar que três países fronteiriços — Uruguai,Colômbia e Argentina — tenham transformado o Brasil numa relíquia do reacionarismo. É uma democracia para as elites.