Apagão afetou 25 estados e o Distrito Federal em 2023 — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
GERADO EM: 23/08/2024 - 00:07
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Em 1960,operar o sistema elétrico brasileiro era muito simples. Como a oferta era 98% de usinas hidrelétricas (UHEs),bastava saber quanto havia de água nos reservatórios e qual seria a demanda. Em 2010,tudo ficou mais complexo. Ainda era pequeno o total da potência de energia eólica e solar na matriz elétrica,mas as usinas termelétricas (UTEs) já participavam com mais de 20%.
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Em 2024,a transformação é magnífica. A solar e a eólica,duas fontes renováveis variáveis (FRVs),já contribuem com mais de 25% da matriz e chegarão a pelo menos 40% em 2030. Nesse novo ambiente,operar o sistema é como,diariamente,tentar equilibrar-se numa corda bamba na travessia de um desfiladeiro. A variabilidade da oferta,que antes dependia apenas das chuvas e da quantidade de combustível,acontece também ao longo das 24 horas do dia. A falta de vento e a menor radiação afetam a quantidade de energia disponível.
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Concordo com a nota de 20 de agosto do Operador Nacional do Sistema (ONS). São desprezíveis os riscos de desabastecimento ou de redução prolongada na oferta de energia. Mas não é desprezível o risco de apagões — como o que atingiu Rondônia e Acre ontem — ou da interrupção repentina no fornecimento em virtude de alguma falha. É exatamente para se prevenir contra esse tipo de risco que servem as (corretas) medidas recentes tomadas pelo ONS.
Todos os dias,no fim da tarde,a demanda de eletricidade passa de 78GW para cerca de 90GW,como no dia 20 de agosto. Ao mesmo tempo,a oferta de energia solar cai de quase 30GW para zero. Assim,42GW de geração precisam ser postos na rede em curto intervalo de tempo.
Com os reservatórios em situação razoável,as UHEs dão conta do recado. Mas,devido à esperada escassez de chuva e ao esforço diário para manter a confiabilidade,os reservatórios se esvaziam mais rapidamente que o normal. Isso tem exigido o acionamento de UTEs caríssimas nos horários de demandas máximas.
Uma conta bem simples: a capacidade total das UHEs é 105GW. Num dia normal,produzem de 37GW a 40GW,entre 8h e 15h. Por volta das 17h,a produção já é superior a 75GW,para uma demanda máxima de 90GW. Se essa demanda chegar a 100GW,como em anos anteriores,e isso ocorrer em outubro ou novembro deste ano,só há como manter a segurança com o despacho de mais UTEs e com a redução voluntária do consumo no fim da tarde. As UHEs não serão suficientes.
É que,em outubro,o índice de armazenamento será bem mais baixo. As UTEs,nesse cenário,são como a vara carregada pelo equilibrista — ajuda a manter o centro de gravidade. E a resposta da demanda atua como uma rede de proteção ao longo da travessia do desfiladeiro nos trechos mais críticos.
É assim mesmo em sistemas cuja oferta passa a contar com predomínio das ótimas FRVs. No Brasil,desde 2022,cerca de 12GW ao ano de energia solar são incorporados à rede,o que acentuará os cuidados para manter a confiabilidade. É natural,então,que sejam maiores os riscos de ultrapassar o limite de déficit de potência. Se,em 20 agosto de 2024,30GW foram retirados da rede,em 2027 serão 50GW,o que tornará rotina o acionamento da resposta da demanda e de UTEs durante algumas horas do dia. A situação pode tornar-se de elevado risco em anos de escassez severa de recursos hídricos,como 2021.
O problema é que as UTEs são muito caras,podem não ser suficientes e deixarão o governo vulnerável ao lobby contra as fontes renováveis. A resposta da demanda,apesar de competitiva,quase não foi usada no Brasil,e não há como estimar quais serão seus efeitos.
O apagão é,por tudo isso,uma perspectiva inquietante para o consumidor,que deve reservar dinheiro para pagar a conta e preparar o espírito para ficar sem luz. E é um e outro,e não um ou outro.
*Edvaldo Santana,doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina,foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica