Header_jogo_eleicao_americana_2 — Foto: ARTE: Mario Martinho
Milhões de americanos irão às urnas em 5 de novembro escolher quem será o 47º presidente dos Estados Unidos: a vice-presidente democrata Kamala Harris ou o ex-presidente republicano Donald Trump. Além da atmosfera polarizada,o formato do sistema eleitoral adiciona outra camada de complexidade na disputa. Diferentemente do Brasil,em que o candidato mais votado pelos eleitores vence,os EUA adotam um esquema de votação indireta,sem regras nacionais,conhecido como Colégio Eleitoral.
O Colégio Eleitoral funciona como um jogo de tabuleiro no formato do mapa dos EUA,em que cada estado vale um determinado número de delegados (ou “pontos”),somando ao todo 538. Em 48 dos 50 estados,prevalece a regra conhecida como “o vencedor leva tudo”: o candidato mais votado pela população — seja por uma diferença de milhões de votos ou por algumas centenas — ganha todos os delegados daquele estado. Para ser eleito,é preciso conquistar ao menos 270 delegados,ou seja,a maioria simples do total em disputa.
Mas este é um campo de batalha com muitas cartas marcadas. O jogador democrata já começa levando os delegados de estados como Califórnia,Nova York e Washington. Já o republicano inicia a partida com os “pontos” certos de estados como Kentucky,Louisiana e Arkansas. Por isso,a real disputa acontece em um pequeno grupo,conhecido como estados-pêndulos (ou swing states),que não têm um histórico recente de votação em determinada sigla.
Como a política está sempre em movimento,os estados-pêndulos variam de eleição em eleição. Neste ano,são sete: Pensilvânia,Wisconsin,Michigan,Arizona,Nevada,Geórgia e Carolina do Norte,que somam ao todo 93 delegados.
O número de delegados por estado é definido pelo tamanho da sua bancada no Congresso: a soma da sua representação no Senado,sempre dois senadores,e na Câmara dos Deputados,proporcional à sua população. Ao longo do tempo,a quantidade de delegados pode sofrer alterações caso haja uma mudança populacional,como ocorreu depois do censo de 2020,quando estados como Texas e Flórida aumentaram o seu colegiado,enquanto Califórnia e Nova York perderam um delegado cada.
Além dos estados,o Distrito de Columbia,onde fica a capital,Washington,tem direito a três delegados. No entanto,territórios americanos como Guam e Porto Rico não votam nas eleições presidenciais e,por isso,não têm delegados — embora alguns realizem primárias em caráter simbólico.
Em 32 dos 50 estados,há leis que proíbem os delegados de votarem em um candidato diferente do escolhido nas urnas. Embora haja um histórico de delegados infieis à vontade popular,a conduta não foi capaz de mudar o resultado de nenhuma eleição até aqui.
Apenas dois estados adotam um sistema um pouco diferente de votação: Maine (4 delegados) e Nebraska (5). Neles,o vencedor do voto popular em todo o estado não recebe todos os delegados disponíveis,apenas dois. Os demais são conquistados de acordo com o vencedor em cada um dos chamados distritos congressionais (2 no Maine e 3 em Nebraska).
Embora na maioria das eleições os vencedores em todo o estado e nos distritos coincidam,já houve casos em que os delegados tiveram que ser divididos. Em 2008,Barack Obama foi o candidato mais votado no 2º distrito de Nebraska e o seu rival, John McCain,venceu no estado e nos demais distritos,levando à primeira divisão desde que a regra foi instituída,em 1992. O Maine,que aderiu ao modelo em 1972,viu o colegiado se dividir pela primeira vez em 2016,quando Donald Trump conquistou o seu 2º distrito apesar da vitória da democrata Hillary Clinton no restante. Neste ano,é possível que ambos os estados vejam seus delegados se dividirem novamente.
Em teoria,como o Colégio Eleitoral resulta em um número par,um empate é plausível numa disputa entre apenas dois candidatos,com cada um conquistando 269 delegados. Projeções do site 270 to Win apontam ao menos quatro cenários para um possível empate entre Kamala e Trump este ano.
Em caso de empate,os estados têm até 11 de dezembro para resolver as disputas antes da votação formal feita pelos delegados eleitos,em 17 de dezembro,e quase um mês antes de o Congresso contar formalmente os votos,em 6 de janeiro. Se permanecer a indefinição,a Constituição americana impõe que seja realizada uma eleição contingencial:a Câmara dos Deputados decide quem será o presidente e o Senado fica responsável por definir o vice. A bancada de cada um dos 50 estados na Câmara tem direito a um único voto,que não precisa seguir o resultado das urnas. O Distrito de Columbia não vota. No Senado,o voto é individual.
Se houver empate na Câmara,o vice-presidente assume como interino. Caso também empate no Senado,que possui 100 cadeiras,e nada seja resolvido até 20 de janeiro,data em que o presidente eleito deve tomar posse,a Constituição determina que o presidente da Câmara assuma interinamente a Presidência.
O único registro de empate na História das eleições americanas aconteceu em 1800 entre Thomas Jefferson e Aaron Burr,num pleito com quatro competidores que terminou com a consagração de Jefferson. Na época,porém,o processo de desempate foi diferente,já que a regra da eleição contingencial só foi estabelecida 24 anos mais tarde.
— Foto: Mario Martinho
Enquanto o eleitorado do Partido Democrata se concentra em estados mais populosos,os eleitores republicanos estão espalhados por um maior número de estados com menor densidade populacional. Apesar do colegiado ser proporcional à população,o fato dele sempre incluir um número fixo de dois delegados — equivalente à representação no Senado — aumenta consideravelmente o peso de lugares menos populosos,onde o Partido Republicano sai em vantagem. Segundo um estudo da Universidade do Texas de 2017,os republicanos têm 65% de chance de vencer no Colégio Eleitoral se forem derrotados por uma margem de 1 a 2 pontos percentuais no voto popular. Mesmo com uma diferença de 3 pontos,os republicanos ainda poderiam vencer no Colégio Eleitoral em 16% das vezes,apontou a mesma pesquisa.
Embora na maior parte das vezes o vencedor no sufrágio popular tenha conquistado também o maior número de delegados,nas únicas quatro vezes na História em que os resultados divergiram,o candidato republicado saiu vitorioso sobre o democrata. Foi o que aconteceu em 2016,quando Hillary Clinton obteve 48,2% dos votos,cerca de 3 milhões a mais do que Trump,que teve 46,1%,mas o magnata venceu a eleição com 304 delegados. Em 2000,o democrata Al Gore também ganhou do republicano George W. Bush no voto popular,com 48,4% a 47,9% dos votos,mas perdeu no Colégio Eleitoral em meio a um imbróglio envolvendo a contagem na Flórida que foi parar na Suprema Corte.
Sim,mas há algumas regras. Ao contrário do Brasil,em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) supervisiona o pleito e atua em eventuais contestações do resultado,os EUA não têm uma instituição federal para isso e cada estado tem seus próprios procedimentos de recontagem em disputas apertadas. Na maioria das vezes,a questão é resolvida por um tribunal civil estadual ou por um órgão legislativo local. No entanto,é possível que a controvérsia suba para a Suprema Corte,como em 2000 com Bush e Al Gore.
Na maior parte dos estados,o candidato que contesta o resultado deve pagar pela recontagem,podendo ser reembolsado pela autoridade eleitoral em alguns casos se ficar comprovada uma divergência nos números. Em 20 estados e no Distrito de Columbia,já existem disposições que determinam a recontagem quando a diferença entre os candidatos seja de até 1 ponto percentual. No entanto,em seis outros,incluindo o estado-chave Arizona,os presidenciáveis não podem pedir que os votos sejam recontados.
O mesmo procedimento que ocorre em caso de empate,que pode culminar em uma eleição contingencial: a Câmara vota no presidente e o Senado,no vice. Em 1876,os resultados de três estados — Flórida,Louisiana e Carolina do Sul — foram contestados e houve uma disputa por um delegado no Oregon. Na época,o Congresso,no entanto,contornou a regra e decidiu criar uma comissão bipartidária para determinar quem deveria receber os 20 delegados em disputa. O republicano Rutherford B. Hayes saiu vitorioso,embora o democrata Samuel Tilden tenha vencido no voto popular.
A eleição contingencial também vale quando nenhum dos candidatos conquista a maioria dos delegados — um cenário mais remoto em um duelo como neste ano,mas que já aconteceu uma vez no passado. Em 1824,Andrew Jackson conquistou 40% do voto popular em uma eleição com quatro candidatos,mas não alcançou o número mínimo de delegados necessários para vencer. O Congresso acabou elegendo seu rival,John Quincy Adams,que não havia conquistado a maioria nem no Colégio Eleitoral nem no voto popular.
— Foto: Mario Martinho
Há um grande debate entre os historiadores até hoje. Alguns afirmam que o modelo foi escolhido para equilibrar os interesses entre os estados mais e menos populosos. Um dos principais argumentos adotados para a sua criação,na época dos chamados Pais Fundadores,defendia que,em um país com dimensões continentais como os EUA,muitos americanos comuns não teriam acesso a informações suficientes para tomar tal decisão.
No entanto,há três razões que costumam ser apontadas por historiadores para justificar o modelo: o medo de um Executivo central forte e de que o voto popular fosse capturado por “aventureiros”,e a escravidão. A Constituição americana,que desenhou o atual sistema eleitoral,foi redigida em 1787,apenas 11 anos depois de as chamadas 13 colônias se tornarem independentes do Reino Unido,e elas queriam manter sua autonomia em um sistema federativo. Além disso,os Pais Fundadores,que influenciaram a redação da Carta,valorizavam mais o viés republicano do que o democrático,pondo mais ênfase na representação do que na soberania popular numa época em que nenhum país elegia seus governantes por sufrágio universal. Por outro lado,os estados do Sul tinham uma enorme população de pessoas escravizadas que não votavam,mas queriam assegurar sua influência sobre o governo. Para isso,três quintos do número de escravos passaram a ser levados em consideração para determinar o tamanho das bancadas estaduais no Congresso,e,portanto,no Colégio Eleitoral.
Os americanos sempre votaram presencialmente em seções eleitorais próximas à sua residência,mas há quatro décadas os estados começaram a flexibilizar as regras para permitir que eleitores registrassem seus votos antes do dia da eleição ou enviassem as cédulas de votação por correio. Diferentemente do Brasil,lá o voto não é obrigatório.
O voto à distância começou,na verdade,durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) para permitir que soldados pudessem votar pelo seu estado em seções eleitorais próximas ao campo de batalha. Um movimento parecido aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),assegurando que tropas destacadas no exterior votassem. Regras começaram a ser formuladas para civis a partir do final do século XIX,mas apenas em casos excepcionais,como doenças graves ou ausências justificadas no dia da votação. O primeiro estado a permitir o voto à distância por qualquer motivo foi a Califórnia,nos anos 1980. Até o ano passado,28 estados e o Distrito de Columbia já haviam aderido ao formato. O voto por correio,por exemplo,teve um papel essencial para evitar a queda na participação durante a pandemia da COVID-19 em 2020.
As eleições americanas acontecem há várias décadas na primeira terça-feira de novembro. Originalmente,o dia de votação variava de acordo com o estado,mas em 1845 foi promulgada uma lei que estabeleceu que o pleito deveria ser realizado em um único dia em todo o país. Na época,os EUA eram uma sociedade majoritariamente agrária e o mês de novembro foi escolhido porque a fase de colheita das safras já havia passado e o clima ainda estava ameno devido ao outono.
Como o país também era muito cristão,os legisladores queriam evitar que a data caísse em 1º de novembro,o Dia de Todos os Santos,ou em um domingo,que os religiosos reservavam para ir à igreja. Outro dia vetado foi a quarta-feira,quando agricultores levavam seus produtos para serem vendidos na cidade,num trajeto que muitas vezes levava um dia de viagem,impedindo também uma eventual votação na quinta. Em uma época anterior aos automóveis e com locais de votação distantes para a população de áreas rurais,o melhor foi a terça-feira.
Hoje,embora menos de 2% dos americanos sejam agricultores,a tradição permanece. Em meio aos temores do baixo comparecimento em um pleito cujo voto não é obrigatório,muitos americanos defendem que a data deveria ser trocada para o final de semana ou que ao menos fosse decretado feriado nacional. No entanto,alternativas como o voto antecipado ou por correio tornaram o dia de votação menos central do processo eleitoral.