Aurora e Eraldo Rodrigues seguros em casa,em Resende: casal lembrou os momentos mais críticos da viagem ao Chile — Foto: Domingos Peixoto
GERADO EM: 13/09/2024 - 04:30
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Era para ser uma viagem feliz de comemoração da recente aposentadoria do engenheiro industrial mecânico Eraldo Rodrigues,de 60 anos,em companhia da mulher,Aurora da Silva Rodrigues,de 59,moradores de Resende,no Sul Fluminense. Mas o trajeto feito de carro pelo casal até o Chile acabou se tornando uma experiência traumática — com final feliz,é verdade. Surpreendidos por uma nevasca,ficaram presos em Copiapó,no Atacama,sem comunicação e com pouca comida,e de onde só foram resgatados seis dias depois. A ajuda do filho Raphael e da nora Cíntia,que pediram ajuda pela internet e foram ao local acompanhar as buscas,foi fundamental. O casal foi localizado no dia 23 por autoridades chilenas. Nesta quinta-feira,no conforto de casa,eles contaram o que passaram.
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ERALDO: “Saímos de Resende no dia 5 do mês passado. O plano era ir até Foz do Iguaçu,de lá entrar na Argentina,e ir ao Chile. Fomos até Copiapó,de onde retornaríamos pela Argentina. Quando partimos (no dia 18),fiz uma pesquisa. Íamos para Tinogasta,na Argentina,e entrei na internet para ver se estava tudo normal. Nos informamos sobre o funcionamento das aduanas,vi fotos da cidade e pegamos estrada,que era muito bem sinalizada. Só não tinha informações sobre risco de nevasca e o fechamento da aduana. Depois de percorrermos 140 quilômetros,nos deparamos com a aduana com a cancela aberta — só tinha lá uma raposa. Pensei em voltar,mas a gasolina não ia dar. Então resolvi seguir. Paramos,tiramos fotos,encontramos lhamas,cavalos,um monte de coisas e fomos adiante. Quando começamos a subir,apareceu um pontinho de neve aqui e outro acolá. Daí a pouco encontramos uma pista com neve. Seguimos,sem problemas,mas fomos surpreendidos por uma nevasca. Vimos duas pessoas indo e um carro vindo. Daí a pouco veio a segunda nevasca,um pouquinho pior,e uma terceira,pior ainda. Na quarta nevasca,não enxergava mais nada,e Aurora foi me guiando. A quinta veio com muita força,e a gente atolou. Esperamos mais um pouco,saí (do veículo) e vi que estávamos perto da fronteira. Tinha um abrigo e fomos para lá. Depois voltamos ao carro e pegamos coisas como barraca,fogareiro e documentos. O abrigo era cheio de buracos,por onde entrava neve. Botão de emergência,parece que tinha sido levado. Tinha placa solar,mas não funcionava. Ventava muito. Dormimos aquela noite,e no dia seguinte fez sol. Limpamos o carro,mas quando pensei que daria para sair,descobri que a neve tinha tomado todo o motor. Achei que no dia seguinte a situação iria melhorar e voltamos para o abrigo com mais roupas e cobertores,mas a situação só piorou.”
AURORA: “Durante a noite parece que aumentava (a nevasca). E era muito barulho (de neve caindo). Pelos buracos,entravam frio e neve.”
ERALDO: “E foi assim,cada dia pior. A parede da barraca que armamos virou uma pedra de gelo. Parecia um iglu. A água que a gente tinha congelou,o gás acabou,tínhamos dois colchões infláveis e um eu furei sem querer. Eu não conseguia dormir.”
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Casal Aurora e Eraldo no Chile,pouco depois de terem sido localizados — Foto: Acervo pessoal
AURORA: “Para comer tínhamos dois pacotinhos de macarrão instantâneo,meio pacote de sopa,dois e meio de biscoito,três maçãs,dois litros e meio de água,um potinho de mel,sachê de açúcar,margarina,balas,um pedação de pão e uma lata de atum,que não comemos. Quando o gás acabou,não tinha mais como descongelar a água para beber e o jeito foi recorrer à neve para nos hidratar e matar a sete.”
ERALDO: “No primeiro dia,já pensei que a gente teria de racionar a comida,pois ninguém vinha para cá e seria difícil nos encontrar. Tinha dia que eu só comia metade do miojo e mais nada. Psicologicamente não senti fome.”
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AURORA: “A gente tinha ciência do que estava acontecendo. Quando paramos no abrigo vimos que estávamos numa situação crítica. A gente sabia que podia morrer ali. Então entramos nesse processo de ir racionando (a alimentação) e cuidando muito bem da cabeça para não nos desesperar. A gente foi fazendo assim: se um comia,o outro comia. Se um bebia,o outro bebia.”
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ERALDO: “Até água,no início a gente racionou,porque sabia que se acabasse — não imaginávamos que parte dela fosse congelar — não teria mais.”
AURORA: “A pior parte era à noite. De dia a gente até se ocupava um pouco,arrumava as coisas,se movimentava dentro do abrigo e não sentia tanto frio (chegou a menos 20 graus). Mas à noite,a gente entrava na barraca e o espaço era apertado. Ele (Eraldo) é muito grande e não conseguia se esticar. A gente não tinha fogo e tinha que fazer coisas para nos manter aquecidos. À noite,a tempestade era mais forte.”
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ERALDO: “Para dormir,eu estava com duas camisas,uma blusa — dessas que parece cobertor — mais outra impermeável e própria para neve,além de três calças. O pé eu enrolava com papel,colocava meia,um saco plástico,mais duas meias. Mesmo assim parecia que não tinha nada. Quando saía colocava tênis. Ainda usava luvas de neve.
Motor do carro foi tomado pela neve — Foto: Acervo pessoal
AURORA: “No dia em que o carro parou lá na neve,a gente já tinha consciência de que não era uma situação muito fácil,porque vimos que nós não tínhamos como nos comunicar com ninguém e também notamos que não passava tanta gente assim por ali. Era domingo,então,sabíamos que seria mais difícil. E na segunda-feira ainda seria feriado. Então,talvez só passasse alguém na terça-feira. Esperávamos que eles (os parentes) fossem perceber que a gente parou de se comunicar. Naquele momento,a gente já percebeu a seriedade da situação. Me apeguei à minha fé em Deus.”