Apesar da semelhança na cor,a dormideira é inofensiva e não possui veneno — Foto: Rodrigo Gonzalez
GERADO EM: 23/10/2024 - 04:01
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As matas cearenses continuam a revelar mistérios e a surpreender seus moradores com a biodiversidade que abrigam. Um exemplo disso foi o recente registro,pela primeira vez no estado,da cobra dormideira" (Dipsas indica),espécie inofensiva e de pequeno porte,conhecida por seus grandes olhos e hábitos noturnos. O achado ocorreu em Guaramiranga,município localizado no Maciço de Baturité,a 105,76 km de Fortaleza,e alerta para a importância da conservação dos brejos de altitude na região.
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A descoberta aconteceu durante o trabalho no roçado – como são chamados os terrenos onde há cultivo – em 2022,quando moradores se depararam com o réptil de menos de 1 metro de comprimento. Sem saber ao certo do que se tratava,a população entrou em contato com pesquisadores do Museu de História Natural do Ceará (MHNCE),vinculado à Universidade Estadual do Ceará (Uece). Após análise,o réptil foi identificado como a Dipsas indica,uma espécie já conhecida da ciência em outros biomas brasileiros,mas nunca antes documentada no Ceará.
O artigo científico intitulado “Novo registro e distribuição geográfica de Dipsas indica Laurenti,1768 no estado do Ceará,Nordeste do Brasil” foi publicado na edição de setembro de 2024 das "Notas de História Natural & Distribuição Geográfica",da Sociedade Brasileira de Herpetologia. De acordo com Rodrigo Gonzalez,curador das coleções de herpetologia do MHNCE e um dos autores do estudo,esse é um marco importante na pesquisa sobre a fauna cearense. “A dormideira é uma espécie típica de florestas e ocorre de forma disjunta no Brasil,com populações na Amazônia,na Mata Atlântica e agora,na Serra de Baturité”,explica.
O registro da cobra dormideira no Ceará traz implicações que vão além de um simples achado. Ele amplia significativamente a área conhecida de ocorrência da espécie,que agora inclui um ponto isolado em uma área florestada em meio à caatinga,a centenas de quilômetros das demais populações. O achado reforça também a importância dos brejos de altitude para a preservação da biodiversidade no Nordeste.
Os brejos de altitude são áreas situadas no perímetro das secas,com clima tropical úmido ou subúmido,e por isso abrigam características da Mata Atlântica em pleno semiárido. Esses ecossistemas funcionam como verdadeiros oásis para várias espécies de flora e fauna que,de outra forma,não sobreviveriam na caatinga ao redor. No caso da Dipsas indica,sua presença na Serra de Baturité sugere que outras áreas de brejo no Ceará também podem abrigar a espécie,além de outras que ainda não foram descobertas.
O doutor em zoologia e especialista em serpentes,Rodrigo Gonzalez ressalta que a descoberta corrobora a teoria dos refúgios,que postula que a Amazônia e a Mata Atlântica estavam conectadas no passado,e que algumas áreas preservaram elementos de ambas as florestas até os dias atuais,mesmo após mudanças no relevo e no clima da América do Sul. "A Dipsas indica na Serra de Baturité é um exemplo vivo dessa teoria. Assim como outras espécies já registradas na região,como a Cobra-Cipó (Chironius dracomaris) e a Jararaca-Verde (Bothrops bilineatus),ela nos mostra a complexidade e a riqueza da biodiversidade que essas áreas guardam",comenta o pesquisador.
A cobra dormideira é inofensiva e vive principalmente em árvores. De hábitos noturnos,ela se alimenta de caracóis e lesmas,que consegue arrancar das conchas graças a adaptações em sua mandíbula. Uma característica marcante da espécie são os olhos grandes,com pupilas elípticas,que podem assustar quem não conhece a espécie. “Ela é bem diferente das cobras venenosas que as pessoas costumam temer. Embora seu padrão de coloração possa ser semelhante ao da jararaca,a dormideira não tem veneno e suas mandíbulas são adaptadas para um tipo de alimentação completamente diferente”,explica Gonzalez em publição nas redes.
Espécie é utilizada em pesquisas científicas — Foto: Rodrigo Gonzalez/Reprodução
A descoberta da cobra dormideira em Guaramiranga só foi possível graças à participação ativa da comunidade local,que,ao encontrar o animal,buscou auxílio dos pesquisadores. Essa atitude foi crucial para a identificação da espécie e para o registro científico. A orientação dos especialistas é que,ao se deparar com animais silvestres,a população entre em contato com o Batalhão de Polícia de Meio Ambiente (BPMA) ou com outros órgãos ambientais para evitar riscos tanto para as pessoas quanto para os animais.
O achado da Dipsas indica no Ceará ressalta a importância de proteger os brejos de altitude e outras áreas de preservação no estado. Com a constante ameaça do desmatamento e das mudanças climáticas,esses ecossistemas se tornam ainda mais vulneráveis. Preservar as florestas que restam é essencial para garantir a sobrevivência de espécies como a dormideira,além de tantas outras que ainda podem ser descobertas.