Giulia Wegbrayt,de 29 anos,evita bebidas alcoólicas. — Foto: Edilson Dantas / O Globo
GERADO EM: 30/10/2024 - 13:54
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Substância mais usada ao redor do planeta,os efeitos do álcool na saúde não passam despercebidos: 400 milhões de pessoas vivem com transtornos ligados à bebida,e 2,6 milhões morrem a cada ano por causa dela,segundo os últimos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda assim,quem evita o consumo é visto como diferente e enfrenta um estigma diário por repensar um hábito enraizado na sociedade.
Essa é a realidade por trás de um novo termo,que tem se popularizado nas redes sociais,o “sober shaming”. Traduzida para algo como “humilhação dos sóbrios”,a expressão faz referência a uma prática que tem como alvo quem deixa de beber. Ao diminuírem — ou cortarem completamente — o consumo de álcool,essas pessoas são constrangidas por conhecidos que bebem.
— O consumo de álcool,principalmente na cultura ocidental e brasileira,faz parte de um comportamento ritualizado e esperado. Ele tem uma base de socialização muito grande que torna um grande desafio para quem quer reduzir ou parar o consumo. E existe uma grande pressão mercadológica,temos grandes empresas de álcool que estimulam o tempo inteiro o consumo. E frente às pressões do mundo trabalho,do estudo,do dia a dia corrido,o álcool acaba virando um instrumento para aliviar a tensão — diz Telmo Ronzani,vice-reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e psicólogo líder do Centro de Referência em Pesquisa,Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas (Crepeia).
Um novo levantamento realizado pela consultoria de pesquisa e estratégia Go Magenta com mil brasileiros apontou que 62% dos consumidores já pensaram alguma vez em diminuir a ingestão de álcool. Dos que conseguiram,68% afirmam ser recorrentemente questionados sobre o porquê. Além disso,49% se sentem desconfortáveis em precisar se explicar e 34% consideram que essa é a principal barreira para a moderação do consumo.
— Nós acabamos sendo os maiores algozes daqueles que querem moderar o consumo. O álcool é a única droga que você precisa se justificar por não usar. Perguntamos se a pessoa está grávida,se ela está doente,e às vezes não pensamos o quanto essas perguntas podem ser íntimas e constrangedoras. A pessoa pode estar tomando algum remédio e não querer falar sobre aquilo,pode ter um episódio perto de alguém com dependência — afirma Gabriela Terra,fundadora da consultoria.
E quando o motivo é apenas não querer,a educadora e mestranda em Artes Clarice Saisse,de 26 anos,acredita que também há uma dificuldade de as pessoas entenderem. No início,a carioca evitava o álcool por questões religiosas,mas com o tempo decidiu continuar sem beber somente por não ter gostado da bebida:
— Em qualquer círculo social,no trabalho,com amigos,existe sempre essa curiosidade do porquê eu não bebo. Mesmo que eu explique o motivo,as pessoas não entendem,parece que fica faltando uma informação. Quando a questão religiosa era um motivo,sinto que era um “argumento” mais aceitável. Mas o apenas não querer é muito difícil de as pessoas entenderem.
A especialista em inteligência de mercado Giulia Wegbrayt,também relata que a decisão de não beber é recebida com estranheza. A moradora de São Paulo,capital,tinha o hábito de consumir bebida alcoólica até pouco antes da pandemia,quando começou a refletir se fazia aquilo pela pressão dos outros ou porque realmente gostava:
— Todo mundo bebe,você sai para a festa e é o padrão. Mas fui ficando mais velha e percebendo que não gosto de álcool,não gosto como me sinto. Hoje meu máximo é uma taça de vinho em ocasiões especiais. Mas tem sempre uma pressão do “bebe um pouco”,“acompanha a gente”. Sempre tem uma pergunta,uma piadinha. É tão enraizado que as pessoas precisam do álcool para se divertir que elas ficam surpresas,“como assim você não precisa”.
Os especialistas apontam que de fato um dos principais fatores que causam esse incômodo é que a mudança de hábito alheia leva à autorreflexão sobre os próprios padrões de consumo. Para 70% dos entrevistados pela Go Magenta,a abstenção do outro provocou um questionamento sobre si mesmo.
— Quando alguém reduz o consumo instiga as pessoas ao redor a refletirem sobre assunto e isso é incômodo. A pessoa vê um amigo e pensa “será que eu também deveria diminuir a bebida,será que ela está me fazendo mal?”. Gera uma provocação — diz Mariana Thibes,doutora em sociologia e coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA).
Carolina Costa,psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead),avalia que muitas vezes deixar de beber pode ser interpretado como uma “quebra de fidelidade”:
Carolina Costa,avalia que muitas vezes deixar de beber pode ser interpretado como uma “quebra de fiedlidade”:
— Existe um ponto que é a identidade de grupo. Você não consumir álcool pode parecer uma quebra de fidelidade,como não fazer mais parte do grupo. A cultura latinoamericana,especificamente,não tem muito o que chamamos de diferenciação sistêmica,que é o ser diferente e pertencer mesmo assim. Nós tendemos mais ao emaranhamento,você precisa fazer tudo o que os outros fazem para ser aceito no grupo.
Thibes acrescenta ainda que há grupos mais vulneráveis a essa pressão do “sober shaming”: — Algumas pesquisas mostram que há perfis mais suscetíveis,como jovens e homens,porque o consumo de álcool também é muito atrelado à masculinidade hegemônica. Para muitos,faz parte do “ser homem” aguentar altas quantidades de bebida.
A popularização do “sober shaming” ocorre no momento em que as gerações mais novas têm diminuído o consumo de bebidas alcoólicas. Recentemente,o ator britânico Tom Holland,conhecido por protagonizar os filmes da franquia “Homem-Aranha”,entre outros longas de sucesso,lançou uma marca de cerveja zero álcool,a Bero,dois anos depois de aderir à sobriedade.
Em entrevista à revista Forbes,Holland contou que era “o tipo de pessoa que,quando tomava uma cerveja,não conseguia tomar apenas uma”. Inicialmente,ele participou do Janeiro Seco,um desafio de passar o primeiro mês do ano longe do álcool. Porém,a empreitada foi mais difícil do que imaginava – foi quando percebeu que tinha uma relação problemática com a bebida.
Após estender o desafio até junho,apenas para ver se conseguia,o ator percebeu que se sentia melhor e decidiu abandonar o álcool completamente: — Foi muito difícil,foi a coisa mais difícil que já fiz e,sem dúvida,a maior conquista da minha vida — contou.
Os números brasileiros começam a refletir essa tendência. O último relatório Covitel,de 2023,mostrou que 44,2% dos adultos de 25 a 34 anos e 36,1% dos jovens de 18 a 24 anos bebiam álcool “quase nunca”,os maiores percentuais de abstêmios entre as faixas etárias. De 55 a 64 anos,por exemplo,apenas 23,7% deixam a bebida de lado
No levantamento da Go Magenta,os três principais motivos citados para moderar o consumo foram a busca por uma vida mais saudável,um maior autocontrole e a perda de peso: — Os millennials pensam mais na saúde porque veem o efeito do álcool de uma forma mais pesada com a ressaca e com os riscos de longo prazo. Já os jovens têm uma questão muitas vezes de reputação,autocontrole,porque mudou muito o que é ser a pessoa bêbada do rolê. E escutamos em entrevistas de meninas que muitas deixaram de beber porque pegavam uber voltando de festas — conta Gabriela,da consultoria.
Em relação à busca por uma vida mais saudável,Thibes acredita que essa é a mudança de comportamento mais ampla que,por sua vez,interfere no consumo de álcool: — A geração Z prefere chegar em casa mais cedo,frequenta mais academias,faz mais atividade física. Se preocupa mais com saúde,alimentação. E todos esses aspectos acabam levando a um menor consumo de álcool.
No caso de Giulia,ela conta que sempre fez esportes e buscou se preocupar com alimentação,então o álcool passou a não “combinar” com seu estilo de vida. — Não tinha porque sacrificar todo meu esforço de comer bem,de me exercitar,para eu beber o fim de semana inteiro. Foi uma união tanto dessa parte de não gostar como de querer levar uma vida saudável. Nesse nicho de pessoas preocupadas com a saúde,você vê cada vez gente bebendo menos — diz.
Na pesquisa da Go Magenta,83% dos que moderaram o álcool perceberam ganhos de saúde física; 78% passaram a ter mais disposição e 72% contaram que o sono melhorou. Além disso,9 a cada 10 afirmaram que a vida social continua igual ou até mesmo melhor do que antes.
— O discurso não é necessariamente contra o consumo,mas por esse consumo mais consciente. Até porque não adianta pensarmos em abstinência,numa lógica punitivista e moralista,especialmente na população jovem,porque o foco no consumo zero não é algo factível — avalia Ronzani.
Mas os especialistas alertam que,embora de fato exista uma tendência de redução de álcool entre os mais jovens,eles paralelamente ainda são a principal faixa etária que,quando bebem,fazem de maneira excessiva e problemática,o chamado “binge drinking”. Esse padrão é definido pelo Cisa como cinco ou mais doses para homens e quatro ou mais para mulheres.
Na Covitel 2023,21% daqueles de 25 a 34 anos relatam que,o volume envolve 7 doses ou mais – o maior percentual entre as faixas etárias. Cada dose equivale a uma lata de cerveja,uma taça de vinho ou um shot de destilado. Já na faixa a partir de 65 anos,que bebe com mais frequência,a vasta maioria (62,2%) consome apenas duas doses ou menos por ocasião.
— A faixa dos jovens ainda é a que consome mais álcool com o objetivo de embriaguez. Então talvez o foco dessa conversa hoje na juventude seja por esse consumo maior de padrões elevados,com mais riscos à saúde,de maior ocorrência de violência,que nos preocupa mais. O álcool é a substância com maior impacto de saúde pública no Brasil e no mundo — diz Ronzani.