Árvore cortada em rua do Rio — Foto: Liane Reis
GERADO EM: 13/11/2024 - 20:26
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Quando o nosso prédio do Bairro Peixoto foi condenado,precisei procurar outro pouso. Isso foi muito antes da internet; encontrar apartamento naquela época era uma aventura radicalmente diferente do que é hoje. A gente comprava os jornais de domingo e lia os classificados de ponta a ponta. Os “tijolinhos”,minúsculos,falavam em linguagem cifrada: “apto tipo casa” (térreo),“ótimo investimento” (precisa de obra),“ambiente sossegado” (fundos). Não havia endereço completo,apenas indicações vagas,como “quadra da praia”,“em frente à praça”. Também não havia fotos dos imóveis; era sempre um blind date imobiliário. A gente recortava o tijolinho,ligava para o número fornecido,marcava visita. O índice de decepção era abissal.
Comecei a procura com sorte,mas eu era jovem e inexperiente e não fui capaz de perceber isso de imediato. Encontrei um apartamento de dois quartos na Lagoa,num prédio modesto mas agradável,com vista e um belíssimo fícus em frente,árvore crescida,majestosa. A arquitetura era ruim,os ambientes pequenos. Eu tinha medo de obras e um orçamento apertado,de modo que continuei procurando. Noventa e quatro apartamentos depois — cada classificado colado na agenda com uma observação ao lado — voltei a ele e fechei negócio.
Vi de tudo entre as duas visitas. Apartamentos escuros,corredores soturnos,prédios impossíveis,zonas barulhentas,manchas de umidade suspeitas,todos os tipos de promessa de dor de cabeça. Também vi alguns muito bons e bonitos,mas invariavelmente atrelados a conjunções adversativas: “mas”,“porém”,“todavia”...
Um em frente ao Cassino da Urca era um sonho: antigo,bem construído,em pleno cartão-postal. Voltei no fim de semana só para ter certeza de que era mesmo ele que eu queria e,surpresa: o apezinho idílico havia se transformado numa sucursal do inferno. A praia estava lotada,e era como se todas as conversas e gritos lá de fora estivessem acontecendo dentro da sala.
Na Avenida Copacabana,na altura do Lido,vi o apartamento do último andar de um prédio neoclássico,único,sui generis. Belíssimo piso em parquet na sala e nos quartos,cada cômodo com um desenho diferente,mármore no banheiro e na cozinha. Não podia ser mais bonito. Mas aí o sinal fechou lá embaixo e o barulho dos carros,que já era complicado,virou o festival das buzinas. O mistério do preço acessível foi esclarecido.
Fui tão feliz no apartamento da Lagoa que,mais tarde,quando as crianças cresceram e precisaram de mais espaço,só andei três casas. A vista compensava os inconvenientes da arquitetura e a árvore da frente,esplendorosa,era uma alegria diária. Eu morria de orgulho de pensar que as nossas vidas estavam de alguma maneira interconectadas: a árvore do nosso prédio,a nossa árvore.
Em algum momento,alguém quis derrubá-la. Supostamente,atrapalhava a vista dos primeiros andares. Foi tudo feito na surdina — mas,quando vi o caminhão da prefeitura e percebi suas intenções,subi na árvore e armei um banzé. Outros vizinhos se juntaram a mim,e ela ganhou uma sobrevida de 30 anos.
Na semana passada ninguém viu o caminhão — ou,se viu,não se importou. Todos os galhos foram cortados. Senti uma dor física ao vê-la pelada. Ontem vieram terminar o serviço: ela foi levada em rodelas de madeira,uma vida de sombra oferecida à rua agora reduzida a lenha.