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‘A descriminalização das drogas tem bons resultados concretos, a legalização ainda não', diz médico especialista na área

2024-11-15     HaiPress

Presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências de Portugal (Icad),João Goulão. — Foto: Divulgação / Fundação Getúlio Vargas (FGV)

RESUMO

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GERADO EM: 14/11/2024 - 14:57

Descriminalização das Drogas: Sucesso em Portugal e Desafios no Brasil

A descriminalização das drogas em Portugal,idealizada pelo médico João Goulão,teve sucesso em reduzir mortes por overdose e infecções,com foco em tratamento ao invés de punição. O Brasil segue o exemplo com a recente decisão do STF sobre a maconha. Goulão destaca a importância das políticas de saúde pública e a necessidade de medidas abrangentes para lidar com dependentes. A legalização é debatida,mas os desafios atuais incluem o policonsumo e novas substâncias. Limites de porte são considerados secundários,com foco principal na eficácia da descriminalização.

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Após o conselho de um grupo de especialistas,motivados por uma grave epidemia de heroína e um número de dependentes que chegava a 1% de toda a população do país,Portugal tomou a decisão pioneira de descriminalizar o porte de drogas ainda em 2001,passando a apostar em estratégias de atenção ao usuário e redução de danos,no lugar da lógica punitivista.

As substâncias permaneceram ilegais,o que são até hoje,mas se alguém é pego com até 10 doses – o que equivale a 25 gramas,no caso da maconha –,o indivíduo é enquadrado como usuário,tem a droga apreendida e é encaminhado para uma rede de avaliação e oferta de tratamento.

Passadas mais de duas décadas,um dos idealizadores da política,e atual presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências de Portugal (Icad),João Goulão,avalia que a estratégia foi bem sucedida.

De fato,entre 1999 e 2015,as mortes por overdose caíram 80%,e os usuários de drogas injetáveis deixaram de representar mais da metade dos novos casos de HIV (52%) para responder por apenas 6%,segundo dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.

No Brasil para participar de um evento sobre o tema,organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV),Goulão contou ao GLOBO que vê com bons olhos a decisão semelhante do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o porte de até 40 gramas de maconha no país. Mas explica que a medida não é uma “fórmula mágica” e que,a exemplo de Portugal,são necessárias políticas em conjunto focadas nos dependentes.

Recentemente,o STF descriminalizou o porte de maconha para consumo. Nesta semana,um grupo de médicos e outros especialistas entregou um documento ao Supremo,revisado pelo senhor,com sugestões para abordar o uso de substâncias no país do ponto de vista da saúde pública,e não criminal. Como vê esse movimento no Brasil?

Vejo com grande satisfação e expectativa. Aqui o debate é em relação à maconha,mas em Portugal descriminalizar todas as substâncias. Porém não é uma medida mágica,precisa ser parte de uma política mais extensa que passa sobretudo por medidas de prevenção,de tratamento,de redução de riscos e minimização de danos e de reinserção social das pessoas com transtornos ligados às drogas.

Mas no ambiente de descriminalização,tudo é mais coerente com o fato de que a dependência é uma doença,e que as pessoas que sofrem com ela têm a mesma dignidade das outras que sofrem com outros problemas de saúde. Portanto,é uma abordagem do ponto de vista da saúde pública,com todas as suas vertentes.

Quais são os principais resultados ao longo desses 20 anos da descriminalização em Portugal?

A evolução de todos os indicadores disponíveis é globalmente positiva. Logo de imediato,no início do século,vimos uma queda quase vertiginosa das infecções por HIV na população usuária de drogas injetáveis,o que era um problema brutal. Houve uma diminuição do consumo entre adolescentes,das mortes por overdose e da criminalidade conexa com drogas.

Portanto,todos os indicadores falam no sentido da descriminalização e de todas as outras respostas em conjunto nos levaram a essa evolução positiva. Penso que valeu muito a pena e queria aproveitar para esclarecer um mito que parece existir. Em Portugal,nós não legalizamos o uso de drogas,descriminalizamos,o que é muito diferente.

Usar drogas continua a ser proibido,e a pessoa continua a ser punida à luz do direito administrativo. Como acontece com as infrações de trânsito. Mas as pessoas não ficam com cadastro criminal,o que limita muitas atividades na vida,como acesso ao emprego,e não acabam na prisão. Além disso,traduz-se,especialmente,numa maior facilidade de aproximação das pessoas que carecem de tratamento.

Quais foram as medidas estabelecidas junto à descriminalização que o senhor julga que foram importantes para ter essa melhora dos indicadores?

Temos uma organização completamente dirigida às pessoas com comportamentos aditivos e dependências,que não são só substâncias ilícitas,mas também substâncias como álcool e comportamentos como dependência de telas,de redes sociais. Nesse sentido,a existência de uma rede dedicada aos comportamentos aditivos me parece essencial.

Por outro lado,foi preciso um conjunto de políticas que pudessem contribuir para diminuir os riscos e os danos desses comportamentos. Foi crucial,por exemplo,distribuir agulhas e seringas aos utilizadores de drogas injetáveis para evitar práticas muito mais arriscadas a consequências mais graves.

Temos também,a mobilização de terapias para dependentes de heroína,que podem ter uma vida normal,trabalhar,viver com suas famílias. São algumas respostas que me parecem essenciais de serem movidas junto à descriminalização como um pano de fundo.

Alguns lugares,como Oregon,nos Estados Unidos,descriminalizaram o consumo e agora estão reavaliando a medida e voltando atrás. Como o senhor vê essas estratégias em outros países?

O que penso é que a descriminalização não é uma medida mágica que por si só possa ter grande impacto nos comportamentos das pessoas. À parte dessa medida,é fundamental desenvolver e tornar acessíveis respostas em nível de tratamento,de redução de danos,de reinserção social,de satisfação das necessidades básicas dos cidadãos. E penso que em lugares como Oregon parece não ter havido outras medidas para além da descriminalização.

Não é viável ter expectativa de grandes mudanças na vida das pessoas se,quando elas são interceptadas pela polícia,aquilo que é feito é apenas dar um telefone para o qual podem ligar na tentativa de obter um tratamento. É preciso muito mais. É necessário uma disponibilidade no acompanhamento dessas pessoas para que elas se movam dentro do sistema,uma ação muito mais presente do que a mera oferta e esperar respostas que são difíceis de alcançar.

A descriminalização tem avançado em alguns países,ao mesmo tempo em que vemos algumas posições mais conservadoras. Aqui no Brasil temos uma PEC que busca ir na direção contrária,e tornar ainda mais rígida a punição para o consumo. Como vê o cenário hoje,tivemos avanços ou retrocessos?

Em Portugal nós tomamos a decisão de descriminalizar,mas vivemos ainda dentro de um paradigma proibicionista. O que tem havido nos últimos anos é um movimento bastante consistente para pautar por um novo paradigma,que é o da legalização com a regulação dos mercados.

A pergunta de milhão de dólares é saber se seremos mais eficazes para evitar o sofrimento pelo uso de drogas com uma regulação,que envolve uma fixação de regras para acessar as substâncias,ou pela proibição que já experimentamos há tantos anos.

Ao mesmo tempo vejo com preocupação países que ficaram de alguma forma para trás nesse debate. Não esquecemos que existem numerosas nações que ainda aplicam pena de morte para crimes leves como o uso de drogas. Acredito que isso é inadmissível.

Em relação à legalização,há benefícios? Ou a descriminalização continua a ser o melhor caminho?

Essa é a questão. As experiências que estão em curso no mundo são,de uma forma geral,ainda bastante recentes. E os impactos são difíceis de avaliar de forma independente. O que encontramos na literatura Internacional são estudos para todos os gostos,porque há muitos vieses. Encontramos evidências supostamente científicas de eficácia da legalização com menos problemas de saúde mental,de violência,de problemas graves,mas também encontramos trabalhos mostrando exatamente o contrário. Penso ainda ser difícil termos evidência robusta para responder essa pergunta. E o que temos que decidir,do meu ponto de vista,é a partir do impacto na saúde pública.

Qual o principal desafio hoje em relação às drogas em Portugal?

Quando implementamos a descriminalização,tínhamos como inimigo principal o uso da heroína,nossa estratégia foi muito condicionada pela existência dessa epidemia. Mas hoje temos um conjunto muito diversificado de substâncias,temos um aumento recente do uso de cocaína,sobretudo na forma de crack,temos novas substâncias psicoativas,temos o chamado policonsumo,que mistura variadas substâncias lícitas e ilícitas. Há essa tendência que é o grande desafio agora,e o fato de algumas substâncias que circulam não haver terapêuticas tão eficazes para revertê-las,como acontece para a heroína.

O STF determinou um limite de 40 g para diferenciar usuário do tráfico,que é um pouco mais alto que o limite em Portugal,de 25 g. Como vê os valores?

Nossa decisão foi pioneira há muitos anos. Provavelmente,se fôssemos repensar os limites,hoje pensaríamos em limites mais elevados,dependendo também do teor de THC. Mas é importante não ficar preso a essa discussão,que é uma discussão lateral,menor,em comparação ao princípio.

O que é importante é fixar um limite,depois é muito mais fácil testar na prática se ele funciona ou não. Tenho visto vários países que estão trabalhando no sentido de descriminalizar o uso de substâncias e depois ficam presos por definições que são secundárias. Acho que seria importante que o princípio (da descriminalização) fosse adotado e depois,então,estruturar se o limite fixado foi o ideal ou não.

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