Apoiadoras de Kamala Harris acompanham a apuração dos votos nos EUA — Foto: Elijah Nouvelage/AFP
GERADO EM: 15/11/2024 - 21:42
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Eu já deveria ter esquecido as eleições nos Estados Unidos. Torci por Kamala Harris,perdi. Perdi eleições municipais,estaduais e federais. Uma fora do Brasil não é nada. Se houver algo em Marte,farei minha aposta.
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A energia inicial,milhões de dólares arrecadados entre pequenos doadores,me impressionou. Pensei que a alegria da campanha e seu olhar para o futuro bastariam. Hoje,percebo que havia uma raiva e uma frustração que o otimismo superficial não resolve. Trump interpretou bem,venceu.
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Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram,com mais entusiasmo.
Não consigo entender como racional uma proposta de deportação em massa. Não só porque será difícil e mais caro substituir essa mão de obra com americanos natos. A ideia de Trump de expulsar imigrantes e mesmo a de Giorgia Meloni,de confiná-los num outro país,não resolvem.
Tangidos por fome,guerras e desastres naturais,milhões continuarão a arriscar suas vidas em busca de oportunidades. O capitalismo garante liberdade para o fluxo de capitais e mercadorias,mas bloqueia a mão de obra. É uma negação de suas bases econômicas. Veremos parte da humanidade tentando escapar; outra,de certa forma,lançando-a ao mar.
Vivemos o ano mais quente da História. A temperatura media já é de 1,5 °C mais alta que a do período pré-industrial. Por que negar tantas evidências,sobretudo num país atingido por furacões cada vez mais fortes,do Katrina ao Milton? Nesse contexto,o slogan drill baby,drill (perfure,querido,perfure) — cavar para buscar petróleo entre as pedras — é uma forma simbólica de cavar a própria sepultura.
A própria ideia de taxar importações,de se fechar,de certa maneira,para o comércio internacional parece sedutora,supõe uma idade de ouro da indústria americana. Mas,na verdade,pode encarecer e dificultar a vida dos americanos. É um tipo de visão que favorece o avanço do grande competidor que é a China. Os chineses se prepararam com visão de longo prazo.
Darei apenas um exemplo: em 2007,eles compraram uma montanha no Peru,o Monte Toromocho. Ele continha 2 bilhões de toneladas de cobre. Nesta semana,a China inaugura um porto gigantesco a 80 quilômetros de Lima. Eles se preparam para dominar as commodities desde o início do século e agora constroem a Nova Rota da Seda. Se abstrairmos o regime político autoritário,os chineses parecem incluir o planeta em sua estratégia,enquanto os Estados Unidos tendem a se fechar numa política isolacionista.
Tudo isso ainda são impressões iniciais. Teremos ainda um longo caminho,e a imprensa americana será uma espécie de termômetro para medir a experiência renovada de Trump. É uma imprensa que,de modo geral,também apostou em Kamala Harris e vive sob grande pressão da direita. Ela pode ter cometido erros,subestimado a frustração popular,mas ainda é uma indústria que gasta parte do dinheiro apurando e confirmando a veracidade das informações. Por mais que seja atacada,a verdade é que é explorada pelas plataformas eletrônicas,que reproduzem seu trabalho sem remunerá-lo.
As suposições de que é possível informar sem apurar e confirmar,de que há uma liberdade ilimitada e de que realidades paralelas têm o mesmo valor dos fatos verificáveis servem apenas para aumentar a confusão e turvar o debate político.
Assim como na pandemia,abre-se um período em que o papel da imprensa americana será essencial ao lado da ciência,que se defrontará com uma grande onda de negacionismo,das mudanças climáticas à importância das vacinas.
Em síntese,a derrota sempre nos leva à humildade de reconhecer erros,reformular caminhos. Nem sempre os vencedores detêm outra verdade,além da verdade de que são os vencedores.