Cantora posou com para a Revista Ela no Manouche,onde se apresenta frequentemente — Foto: Mateus Augusto Rubim
GERADO EM: 27/11/2024 - 19:57
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Angela Ro Ro está de bom humor. Depois de pedir para remarcar a entrevista duas vezes,surpreende a reportagem com uma ligação no meio da tarde. “Meu anjo,está tudo bem. Eu me atrasei e,depois,me adiantei”,justifica-se. “Deixa só eu dar uma pigarreada aqui. Não posso nem sonhar em ficar com dor de garganta.” Limpa as cordas vocais e fala por uma hora e meia,em uma conversa de gargalhadas fartas,mesmo quando os assuntos mais espinhosos vêm à tona.
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É com essa energia que a cantora chega,no próximo dia 5,aos 75 anos. “Meu grande amor é a vida. Ultimamente,nem faço questão de ter festa. Comemoro sozinha. Mas estou aberta à temporada do meu aniversário. Espero fazer 85,95,105,com as pessoas olhando para mim e dizendo: ‘Jesus,vamos precisar aturá-la’”,diz,toda trabalhada no deboche,uma marca registrada.
O futuro,de fato,soa-lhe promissor. No dia 3 de janeiro,sobe ao palco do Teatro Rival Petrobras para o show “75 anos de amor à música”,que também será apresentado em São Paulo,no Teatro J. Safra,no dia11 do mesmo mês. Enquanto isso,grava um documentário sobre a própria história,com direção de Liliane Mutti,e planeja escrever uma biografia. “Já que falaram tanto sobre mim,agora vou tentar contar tudo”,avisa,interessada também em gravar um vinil com canções inéditas.
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Os planos vêm a calhar para a artista que é uma ótima contadora de histórias,como faz em seus shows,entre uma música e outra,e na entrevista a seguir. Ro Ro conta como lidou com um abuso na infância,as desilusões amorosas e as violências policiais que lhe prejudicaram tanto a visão quanto a audição. Lembra também da juventude efervescente,quando rodava os bares da noite carioca tocando piano,e afirma que deixou o uísque para trás. Famosa por cantar o amor,diz que seu maior match é consigo mesma e jura que a fama de pegadora não traduz a realidade.
ANGELA RO RO - Sou uma pessoa exótica em comparação às outras,que costumam ter expectativas. Desde pequena,nunca quis ser nada,nunca quis ter nada. Certa vez,uma vizinha perguntou o que eu queria ser quando crescer. Simplesmente,peguei meu acordeom e toquei. Tenho esse slogan: Meu trabalho é meu ofício; meu ofício é a música; e a música é meu amor. Espero ter saúde e estar sempre apta a trabalhar. Se ficar olhando para trás... Já fiz tanta besteira. A maioria das lembranças é boa. Mas,se ficar refletindo,vou ficar doida,sem presente.
De ter sido otária,como na ocasião em que estava quieta no meu canto,e uma pessoa de quem havia me separado me chamou para o apartamento que era nosso. Uma amiga disse: “Não vá! É cilada”. Fui mesmo assim. Ao chegar lá,ela estava trancada num quarto e havia chamado a polícia. Eu que abri a porta para os policiais. Fui a hostess! Eles me deram uma gravata,me arrastaram,quase lesaram a minha face. Cheguei à delegacia toda machucada. No boletim de ocorrência,constava que eu havia batido na minha companheira,em quem nem havia encostado. Ela chegou na delegacia só depois. Tomou banho,penteou o cabelo,envernizou o nariz... Estava com o vestido mais caro que eu havia lhe dado,assim como o sapato. O delegado falou: “Desconheço esse B.O.”. Mas ela ficou quieta até hoje. Não diz: “Ela não me bateu”. Não preciso citar o nome (da cantora) porque todo mundo sabe quem é. Eu me arrependo de tudo que seja parecido com isso,de qualquer vacilo em levar em consideração pessoas de má fé.
Fui molestada por um tio aos 9 anos,mas isso não me traumatizou. Consegui me livrar dele,que não tirou a minha virgindade. Muita gente pode dizer: “Ah! Por isso,virou lésbica”. Mas não tem nada a ver. Já era taradinha,desde os 6 anos,pela (vedete) Virgínia Lane. Depois,tiveram outras coisas. Fui espancada pela milícia de Mangaratiba,aos 33 anos. Me bateram com soco inglês,cassetete... Perdi os sentidos e acordei com crianças cantando “Amor meu grande amor”. Lembro de pensar: “Jesus,cheguei no inferno!”. Um dos sujeitos me aplicou duas barras de ferro por trás da cabeça e perdi a visão do olho direito. Da outra vez,em 1984,ainda na ditadura,militares fardados vieram com um camburão atrás de mim,me assediaram e me levaram para o Instituto Médico Legal,onde me deram muita porrada,fizeram uma tortura chamada telefone. Pegaram duas placas de metal daquelas de Raio-X e deram com elas nos meus ouvidos. Lembro-me que o cara fazia isso com pênis ereto de excitação. Fiquei praticamente surda do ouvido esquerdo.
Carrego sequelas físicas,que são inevitáveis. Agora,de resto,não estou nem aí. Sobrevivente,para mim,é pouco. Sou vivente.
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A capa do primeiro disco,"Angela Ro Ro",lançado em 1979 — Foto: Divulgação
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"Só nos resta viver" foi lançado no ano seguinte — Foto: Divulgação
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A cantora em entrevista coletiva dada a jornalistas,em 1981 — Foto: Aníbal Philot
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No Festival de Rock de Saquarema,em 1976 — Foto: Jorge Peter
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Com Ney Matogrosso,um amigo de longa data — Foto: Caique Cunha
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Entre Frejat e Arnaldo Antunes — Foto: Cristina Granato
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Com Bethânia,nos anos 2000 — Foto: Leo Aversa
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Barão Vermelho e Angela Ro Ro — Foto: Divulgação / Ana Branco
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O álbum "Escândalo" é um clássico dos anos 1980 — Foto: Divulgação
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Com Sandra de Sá,no lançamento do CD "Compasso" e gravação de DVD no Circo Voador — Foto: Cristina Granato
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Publicidade Cantora completa 75 anos no dia 5 de dezembro
Adoro as pessoas,mesmo quando são detestáveis. Volta e meia,namoro. É uma questão de afeto,companhia,carinho e tesão. Mas faz 75 anos que estou namorando o grande amor da minha vida,que sou eu.
Para com isso (risos). Não tem fisioterapeuta,não. Era brincadeira. Falo muita loucurinha,especialmente quando faço show com piano. E,na realidade,meu fisioterapeuta é homem.
Carioca mantém o humor mesmo quando relembra episódios espinhosos — Foto: Mateus Augusto Rubim
Engraçado... Nunca fui muito chegada a sexo,como as outras pessoas que conhecia. Mas,depois dos 50,comecei a me animar um pouco. Mesmo assim,tem outras coisas mais divertidas para fazer. Isso de viver em função de seduzir alguém ou de ser seduzida é algo que não levo muito em consideração como fator básico da vida.
Engraçado,né? Quem me conhece sabe que não tenho nada a ver com essa fama. Talvez seja pelo jeito escancarado.
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Muita gente morreu por HIV,já na virada de 1989. Desde o Cazuza,que era uma pessoa muito querida,um parceiro de farras,a uma amiga que padeceu bastante. Tentamos ajudá-la como podíamos,mas dinheiro não compra muita coisa,sabe? Além disso,meu pai morreu e minha mãe teve câncer e morreu também. Então,foi bastante sofrido. Já nos anos 2000,eu estava gordona,pesando 140 quilos. Emagreci em cerca de três anos e cheguei aos 80 quilos,que conservo até hoje. Na verdade,estou pesando 60 quilos,medindo quase 1,70 metro. É bom porque não preciso comprar roupa nova (gargalhada).
Fechando a boca. Inclusive,parei com o uísque e o cigarro,que é muito difícil de largar. Parei com tudo de uma vez só.
Não,porque tenho o elixir paregórico. Papo de velho,né ? Mas não tenho bebido,não é mais do meu cotidiano. Gostava muito da farra. Até os 30 anos,morei com os meus pais e,depois de uma certa hora,não podia tocar piano. Então,saía para o Baixo Leblon,onde ia ao Real Astoria e à Mykonos,ou para a Flag,em Copacabana,em busca de um piano. Tinha também a 706,que era fantástica,com o Osmar Milito no piano. E os crooners eram Djavan,Áurea Martins e Emílio Santiago. O que você quer mais? Essa era a minha noitada: sair atrás de um piano.
Ro Ro lançou dois singles este ano — Foto: Mateus Augusto Rubim
Muita gente tomava o Santo Daime,e me ofereceram na forma de chazinho. Não quis tomar. Nunca peguei assim tão pesado (com as drogas). Já era meio louquinha. E sempre fui hippie família,né? Acabou o horário de ser hippie,voltava para casa.
Sou uma pessoa econômica,não gasto com joias e roupas. Cismo com um tênis ou dois e fico com eles até dizer chega. Tenho uma casa em Saquarema e um apartamento pequeno em Copacabana,ambos herdados dos meus pais. Não tenho carro e levo uma vida simples. Agradeço profundamente a cada pessoa que me ajudou até começarem as lives,naquela época.
Uma vez ou outra. Tem o Ney (Matogrosso)... O Caetano me chamou para os shows do “Transa”,já que toquei gaita na gravação do disco em Londres,na década de 1970. Também foi sensacional cantar com os meninos do Barão Vermelho,em outubro,no Rio. Uma das experiências mais bacanas que já tive.
Tenho algumas composições inéditas,além de “Planos do céu” e “Cadê o samba?”,que lancei este ano,e gostaria de gravar um vinil. Também quero deixar a preguiça de lado e fazer minha biografia. E tem o filme que já está sendo feito. A Liliane e a turma dela têm me filmado no Rival,gravaram a minha participação nos shows do Caetano e vamos fazer umas tomadas no Manouche,em que sou eu e o piano,como me apresento por lá.
Que venha,a cada segundo,passando o mais tranquilo possível,mesmo nesse mundo turbulento. A raça da gente é muito estranha. Não é uma raça boa não. Mas que eu continue sendo quem sou — e não faço mais do que obrigação —,sendo honesta,boa e generosa. Também espero ter saúde mental e física.