Dois meninos e um homem caminham por prédio destruído durante ataque aéreo israelense em 15 de janeiro,em Jenin,na Cisjordânia — Foto: Zain Jaafar/AFP
GERADO EM: 17/02/2025 - 20:07
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Uma operação militar de Israel que durou semanas em várias cidades da Cisjordânia ocupada deslocou cerca de 40 mil palestinos de suas casas — e passou a ser o maior deslocamento de civis no território desde a guerra árabe-israelense de 1967,segundo historiadores e pesquisadores ouvidos pelo The Times.
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A ofensiva forçou milhares de moradores a buscarem abrigos com amigos e parentes,ou a acamparem em salões de festas,escolas,mesquitas e até em prédios municipais. O Exército de Israel afirma que a operação é apenas uma tentativa de sufocar o aumento da militância em Jenin,Tulkarem e perto de Tubas,visando atiradores que,segundo eles,realizaram ou estão planejando ataques terroristas contra israelenses.
Palestinos,no entanto,temem que seja uma tentativa velada de deslocar permanentemente os residentes de suas casas e de exercer maior controle sobre áreas atualmente administradas pela Autoridade Nacional Palestina (ANP),um corpo semi-autônomo que também tem lutado contra militantes nos últimos meses.
Além disso,muitos dos deslocados são descendentes de refugiados que foram expulsos ou fugiram de suas casas durante as guerras em torno da criação do estado de Israel em 1948,um período conhecido em árabe como Nakba (catástrofe,em árabe). O deslocamento renovado,mesmo que temporário,traz à tona memórias dolorosas do trauma central na história palestina. Embora cerca de 3 mil pessoas tenham retornado para casa,a maioria ainda está sem-teto após mais de três semanas.
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O deslocamento atual é maior do que o que ocorreu durante uma campanha israelense semelhante na Cisjordânia em 2002,de acordo com dois palestinos e dois israelenses especialistas em história da Cisjordânia. Naquele ano,tropas invadiram várias cidades no auge de uma revolta palestina,conhecida como a Segunda Intifada,que começou com protestos antes de levar a ataques contra civis em Israel.
Os números atuais também superam o deslocamento durante os confrontos intra-palestinos no início deste ano,quando até mil residentes de Jenin deixaram suas casas.
Assim como em 2002,alguns dos deslocados durante essa nova campanha não terão casa para retornar. O Exército israelense destruiu dezenas de edifícios nas áreas que invadiu,danificando estradas,canos de água e linhas de energia para destruir o que ele chama de “armadilhas preparadas” pelos militantes.
O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU afirmou que os sistemas de água e saneamento foram destruídos em quatro bairros urbanos conhecidos como campos de refugiados porque abrigam pessoas deslocadas em 1948 e seus descendentes. A agência acrescentou que parte da infraestrutura de água foi contaminada com esgoto.
— Chegamos a um ponto em que os campos de refugiados estão fora de operação — disse Hakeem Abu Safiye,que supervisiona os serviços de emergência no campo de Tulkarem. — Eles são inabitáveis. Mesmo que o Exército saia,não sabemos o que será deixado para reparar.
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A escala total dos danos ainda é incerta porque o Exército ainda está operando na maioria das áreas que invadiu,mas as Nações Unidas já registraram danos severos em mais de 150 casas em Jenin. Até o início de fevereiro,o Exército israelense havia reconhecido a destruição de pelo menos 23 edifícios,mas não confirmou o número mais recente.
— Os soldados estão assumindo uma área após a outra,destruindo casas,infraestrutura e estradas — disse Ramy Abu Siriye,53 anos,um barbeiro que foi forçado a fugir de sua casa em Tulkarem em 27 de janeiro,o primeiro dia da operação israelense na cidade. — Os israelenses têm dois objetivos: empurrar os refugiados do norte da Cisjordânia em direção às áreas centrais,visando apagar completamente os campos de refugiados,e eliminar a resistência e enfraquecer a Autoridade Palestina.
Porta-voz do Exército israelense,o tenente-coronel Nadav Shoshani afirmou que o objetivo das Forças Armadas de Israel era erradicar grupos militantes,incluindo o Hamas,que lançam ataques terroristas contra civis israelenses. Ele reconheceu que,em alguns casos,pessoas foram ordenadas a deixar edifícios específicos próximos ao que ele disse ser “esconderijos de militantes”. Mas negou qualquer política ampla de “evacuação forçada ou deslocamento”.
“O propósito das operações é evitar o terror a partir de áreas a poucos quilômetros de comunidades judaicas e evitar a repetição de 7 de outubro”,disse Shoshani,referindo-se ao ataque liderado pelo grupo terrorista Hamas a Israel em outubro de 2023,que matou até 1,2 mil pessoas e levou ao sequestro de outras 250. “Se as pessoas quiserem se mover,obviamente estão autorizadas a fazê-lo”,acrescentou.
Cerca de 3 mil pessoas conseguiram retornar ao campo de al-Faraa,perto de Tubas. Mas os palestinos deslocados disseram que,tanto em Jenin quanto em Tulkarem,foram instruídos a sair por soldados que usaram alto-falantes para fazer ordens gerais de evacuação. Proprietário de um supermercado,Aws Khader,de 29 anos,disse que megafones foram usados para ordenar que as pessoas saíssem,indicando que,do contrário,elas seriam baleadas.
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Ao ser questionado sobre este e outros incidentes semelhantes,o Exército repetiu em um comunicado que nenhuma ordem de evacuação havia sido dada,mas que todos aqueles que quisessem deixar o local foram providos de passagem segura. O comunicado disse que as tropas operaram no bairro de Khader porque haviam “descoberto infraestrutura de terror e armas que os terroristas haviam escondido em uma livraria.”
Os palestinos descartam as explicações do Exército,citando apelos de ministros do governo de extrema direita de Israel para incentivar a fuga de palestinos da Cisjordânia,destruir a ANP e anexar o território.
Israel capturou a Cisjordânia em 1967 da Jordânia,expulsando palestinos de várias aldeias próximas a Israel e levando à fuga de centenas de milhares para o território jordaniano. Desde então,o Estado judeu tem gradualmente consolidado seu controle,construindo centenas de assentamentos,muitas vezes em terras privadas palestinas,para centenas de milhares de civis israelenses,e criando uma estrutura que críticos descrevem como um sistema de apartheid.
Os esforços para consolidar o controle israelense sobre o território se intensificaram depois que o atual governo israelense assumiu o cargo em 2022. Bezalel Smotrich,um líder de assentamentos que virou ministro da Fazenda,recebeu autoridade sobre parte de uma unidade militar que controla projetos de construção palestinos na maior parte do território.
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Sua capacitação aumentou as suspeitas sobre as intenções do governo: Smotrich publicou um plano extenso em 2017 que propunha o controle permanente de Israel sobre o território. De acordo com o plano,os palestinos seriam privados de direitos de voto,pelo menos inicialmente,e aqueles que não aceitassem o controle israelense seriam pagos para emigrar ou mortos se recorressem à violência.
O governo também impôs crescentes restrições à movimentação dos palestinos na Cisjordânia; baniu a UNRWA,a agência das Nações Unidas que cuida de refugiados palestinos; e fez pouco para conter os esforços de ativistas israelenses de extrema direita para forçar milhares de palestinos a saírem de áreas remotas,mas estratégicas,do território.
— O que torna este momento sem precedentes não é apenas a escala do deslocamento,mas também o discurso acompanhante,que cada vez mais normaliza a ideia do deslocamento forçado permanente — disse Maha Nassar,uma historiadora palestino-americana da Universidade do Arizona. — Isso representa uma escalada significativa no conflito de longa data,algo que ameaça alterar fundamentalmente o panorama político e demográfico da região.