Flávia Maria da Silva,CEO da Tereza - Vale a Pena — Foto: Divulgação
GERADO EM: 04/03/2025 - 19:38
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Flávia Maria da Silva comandou por quase 20 anos as finanças de uma quadrilha de traficantes em São Paulo. Abria e fechava contas,controlava o fluxo de pagamentos e a logística. No mês passado,assumiu o cargo de CEO da Tereza — Vale a Pena,negócio social que emprega mulheres egressas do sistema prisional.
A "virada" na vida começou no presídio feminino Tremembé 2,onde cumpria pena de 22 anos por tráfico e associação ao tráfico. Falante e despachada,Flávia Maria era apontada como “liderança negativa” dentro da cadeia: reclamava da comida azeda,do absorvente que não era suficiente. Mas já estava esquecida e invisibilizada — “anos sem lavar o cabelo,será que ainda sou mulher?” —,sem contato com o filho ou a mãe. Foi quando a advogada e ativista Patrícia Villela Marino a descobriu na prisão.
Casada com Ricardo Villela Marino,herdeiro e chairman do Itaú América Latina,Patrícia preside a Humanitas 360,ONG que atua no combate à violência e que tinha um projeto de cooperativa social para dar ocupação,renda e perspectiva de futuro a mulheres encarceradas. O ano era 2018.
— Na primeira reunião da Humanitas no Tremembé,a diretora me apresentou dizendo “esse é o pior monstro que eu tenho aqui” — lembra Flávia Maria.
Patrícia não se intimidou.
— Ela olhou nos meus olhos e falou: Flávia é o nome da moça que me ajuda a cuidar do meu filho. O monstro dela vai se dar bem com o meu monstro — completou a ex-detenta.
A cooperativa cresceu,chegou a empregar 30 mulheres e se expandiu para um presídio no Maranhão. Mas acabou tendo vida curta. O "sistema" encontrou brechas para impedir o seu funcionamento.
— A gente ia se adequando,recebemos até denúncia do Ministério Público do Trabalho por razões de ergonomia. Uma hora não deu mais — diz Patrícia.
Nem o sobrenome sensibilizou o então governador João Doria.
— Foi muito difícil. A corrupção,a exclusão e a misoginia imperam no sistema prisional. Mas a única maneira de tratar a inclusão é pela dignidade,achando lugar na pauta econômica do país,para que pessoas que tenham cometido ilícitos tenham oportunidade de exercer uma atividade lícita – diz Patrícia.
O nome Tereza é uma referência às cordas feitas de cobertor e lençol que os presos fazem para tentar escapar da prisão. A marca foi criada pela cooperativa ainda no Tremembé. Anos depois,quando algumas das cooperadas saíram do regime após cumprirem suas penas,surgiu a ideia de recriar a marca com o objetivo de reinseri-las na sociedade.
A Tereza está há dois anos funcionando como negócio social,com CNPJ próprio e sede no Civi-co,hub de fundado por Patrícia no bairro da Vila Madalena,em São Paulo. Confecciona peças com feltro produzido com garrafa PET reciclada. Vende produções próprias e em parceria com clientes corporativos e designers.
Hoje são 11 mulheres egressas do sistema prisional trabalhando com carteira assinada. A meta de Flávia Maria é fechar contratos suficientes para ser capaz de empregar mais dez até o fim do ano. Quando não consegue empregar,tenta encaminhar para outros negócios sociais parceiros,como a Opportunità Pizzaria Social,iniciativa dos institutos Recomeçar e Gerando Falcões.
— O crime paga bem. A mulher sai da prisão desnorteada,não tem onde morar,precisa de ajuda até para tirar documentos — conta Flávia Maria.
A produção da Tereza está nas cúpulas dos abajures do restaurante Manioca no Shopping JK Iguatemi; em produtos e brindes de marcas como Vult e SEB; e também no figurino de Martinho,Coração de Rei,o musical em homenagem ao sambista Martinho da Vila — trabalho pelo qual a Tereza concorre ao Prêmio Shell 2025,categoria social.
Para ir ao evento de premiação no Rio,Flávia Maria vai precisar de autorização judicial. Ela cumpre sentença até 2032 no regime aberto. A cada três meses precisa se apresentar à Justiça e comprovar trabalho lícito e endereço fixo. Depois das 22h,só pode estar na rua com autorização.
Flávia Maria lia muito na prisão,onde tomou contato com os primeiros livros jurídicos. No dia da sua primeira saidinha,correu para se inscrever no Enem. Hoje está no sétimo semestre do curso de Direito na Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).
Ela tinha 16 anos,um bebê de colo quando o companheiro,dez anos mais velho,foi assassinado na porta de casa. Herdou do marido a função administrativa do tráfico. Até ser presa aos 34 anos,tirou do crime seu sustento e viveu uma vida de fachada e nômade — frequentava reuniões de pais na escola,mas estava sempre mudando de endereço.
— Me arrependo do meu passado. Se pudesse,voltava atrás. Hoje sou uma mulher feliz por ter encontrado no meu caminho alguém que acredita na mudança do outro — diz Flávia Maria,que reatou com o filho,hoje um profissional da área de TI.