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Brasil fictício: Propriedade de terra autodeclarada excede área do país em um Pará

2025-04-27     IDOPRESS

Brasil fictício: Propriedade de terra autodeclarada excede área do país em um Pará

Na vastidão da floresta amazônica,a Fazenda Terra Roxa,entre os municípios de São Félix do Xingu e Altamira,no sul do Pará,ocupa uma área maior do que a cidade do Rio de Janeiro. Além do tamanho,a propriedade rural chamou a atenção de técnicos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) pela velocidade com que seus espaços verdes passaram a ser substituídos por pastos,estradas e até uma pista de pouso. Imagens de satélite identificaram ainda marcas de queimadas. Diante da devastação,o órgão ambiental embargou a área e impôs multas que chegam a R$ 5 milhões. A punição,porém,nunca foi aplicada. Além de o terreno ter sido registrado em nome de um laranja,um aposentado de Salvador que nunca atravessou a porteira do local,há outros 50 imóveis em cima da mesma fazenda. Não fisicamente,mas no Cadastro Ambiental Rural (CAR),sistema oficial do governo,onde foram cadastrados na mesma localização.

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A manobra utilizada na Fazenda Terra Roxa revela uma estratégia adotada na Amazônia para driblar a fiscalização: manipular o sistema do CAR com a inserção de dados falsos ou inconsistentes. Além dos "prédios de fazendas",em que várias propriedades são registradas na mesma localidade para impedir a identificação do real proprietário,há casos em que o tamanho do imóvel foi reduzido para excluir as áreas onde a vegetação foi derrubada,cadastros feitos em nome de laranjas,uso de CPFs falsos e até a mudança para dentro de rios,a quilômetros de onde o terreno verdadeiramente está.

Radiografia inédita nos registros do CAR feita pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB),a pedido do GLOBO,mostra que hoje existem 139,6 milhões de hectares com sobreposição de imóveis rurais. É como se o país tivesse um estado do Pará inteiro a mais. Um Brasil fictício que só existe no papel.

AVANÇO DO DESMATAMENTO

Criado em 2014 para verificar se os donos de imóveis estão cumprindo as regras do Código Florestal,que barra o desmatamento ilegal e exige a preservação de vegetação nativa,o CAR possui atualmente 7,8 milhões de propriedades inscritas. O cadastro é obrigatório e autodeclaratório,ou seja,é o próprio dono do imóvel que informa os limites da sua fazenda,se ela tem nascentes,mata nativa e áreas a serem protegidas,por exemplo. Esse registro serve como uma espécie de RG da terra,necessário para ter acesso a crédito em bancos,licenças ambientais e,em casos de produtores rurais,uma exigência para vender seus produtos agrícolas.

A fiscalização para saber se os registros feitos pelos proprietários no CAR estão corretos cabe aos governos estaduais. Entretanto,essa validação caminha a passos lentos e até hoje só foi concluída em uma quantidade ínfima de propriedades,correspondente a 3% dos imóveis cadastrados. Na prática,vale a palavra do fazendeiro.

ÁREAS SOBREPOSTAS

E mesmo nos casos em que são encontrados problemas,como nos identificados na Terra Roxa,é permitido ao proprietário “retificar” o cadastro,dando margem para fraudes,como mudar os registros do imóvel. Isso abriu um flanco para o que os especialistas chamam de “apagamento de desmatamento”.

Um estudo do Center for Climate Crime Analysis (CCCA),uma ONG especializada em rastrear crimes ambientais,identificou mais de 9 mil imóveis rurais que mudaram de lugar ou alteraram seus contornos no CAR entre 2019 e 2024. O objetivo,segundo os pesquisadores,era camuflar os registros de desmatamento,embargos do Ibama ou sobreposição com áreas protegidas. Em 480 casos,os imóveis foram “movidos” para dentro de rios e lagos,áreas inviáveis para criação de gado ou produção agrícola.

Foi o que aconteceu com a Fazenda Jatobá,em Altamira (PA). Após o Ibama identificar áreas de desmatamento dentro dos limites da propriedade,o dono do imóvel alterou a inscrição para o meio do Rio Xingu,a mais de 300 quilômetros de onde originalmente foi registrada no CAR. Segundo o CCCA,a maior movimentação no cadastro foi o de uma fazenda de 5 mil hectares no Amazonas que "andou" 1.580 quilômetros dentro do Estado,o equivalente à distância entre o Rio e Porto Alegre.

— É o que nós apelidamos de "fazendas voadoras". Para fugir de alertas de desmatamento e embargos,alguns fazendeiros movem o CAR para outros lugares e até para cima de rios,porque sabem que ali ninguém vai incomodar. É uma forma de “apagar” o desmatamento — diz o engenheiro florestal Rodolfo Gadelha de Sousa,do CCCA.

'Dá para ficar fora do CAR?'

Fraudes no CAR também entraram na mira da Polícia Federal. Uma operação deflagrada no fim de 2023 detectou que um fazendeiro considerado “o maior devastador da Amazônia” manipulava registros no sistema para evitar ser responsabilizado pelo desmatamento de 2.710 hectares — o equivalente a 3 mil campos de futebol ou 1,5 vezes o tamanho da Ilha de Fernando de Noronha. Entre as irregularidades identificadas estavam os registros de propriedades em nome de laranjas ou a edição do cadastro para excluir áreas onde a derrubada da floresta havia sido identificada.

Interceptações telefônicas revelaram uma conversa da filha do pecuarista discutindo com um engenheiro florestal maneiras de “limpar” uma área embargada no CAR. O objetivo seria liberar a venda de gado a frigoríficos,que exigem comprovação de produção sem vínculo com desmatamento,ainda que apenas no papel.

"Será que essa área embargada não dá para ficar fora? Que daí faria o CAR do restante desembargado",pergunta ela ao engenheiro florestal,que questiona se a ideia seria "só mexer no CAR mesmo". Ao que ela responde: "Só o CAR. Que eles incomodam lá no frigorífico". Mais à frente,o homem comenta que para "liberar ao frigorífico" o "mais rápido é o ajuste do CAR mesmo".

De acordo com o inquérito,o diálogo evidenciou que os investigados alteraram os cadastros das propriedades para que áreas "ilegais com desmatamento e queimadas" ficassem de fora dos limites declarados,abrindo o caminho para a "livre comercialização de gado".

A defesa da família proprietária da fazenda nega as acusações e atribui as irregularidades à empresa contratada para inserir os dados no CAR. "A empresa que manejava os dados inseridos no CAR também foi investigada e denunciada por,aparentemente,agir de forma irregular no atendimento de inúmeras propriedades",diz a nota dos advogados.

STATUS DOS CARs POR ESTADO

Como na Amazônia os títulos de terra são escassos,o CAR também passou a ser utilizado como documento fundiário em negociações que envolvem terras da União. O sistema de autodeclaração permite que grileiros inscrevam áreas públicas como suas e as vendam para pessoas que acreditam que,por ser um registro oficial,estão comprando algo legal. No início do mês,a Justiça Federal do Pará mandou o governo estadual invalidar os cadastros que incidiam sobre a floresta nacional do Jamanxim,um território de preservação ambiental no estado,pois eram resultado da "atuação de organizações voltadas à grilagem de terras públicas”. O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) detectou três fazendas de mais de 6.300 hectares,ou 323 estádios do Maracanã,que estavam sobrepostas à floresta.

— O CAR não pode ser vilanizado,ele é uma tomografia,um raio-X do caos fundiário que há no Brasil. Nós conseguimos com sucesso povoar o país com o cadastro,mas sempre houve sobreposição de terras na Amazônia. O que não pode é deixar entrar lixo no sistema,que é orgânico e precisa sempre ser evoluído — afirma o engenheiro agrônomo Raimundo Deusdará,ex-presidente do Sistema Florestal Brasileiro,considerado o "pai do CAR" por ter colocado o sistema em operação.

Em outro caso,quatro fazendas situadas em Altamira diminuíram suas áreas no CAR em mais de 5 mil hectares entre 2020 e 2021 para deixar de abranger áreas da unidade de conservação Triunfo do Xingu (PA). O proprietário dos imóveis já havia sido denunciado por desmatamento ilegal em outra área,onde o Ministério Público do Pará identificou a abertura de estradas,movimentação de máquinas,exploração de madeira e barracos construídos no local.

— Na nova fronteira do desmatamento na Amazônia,o CAR figura muitas vezes como estratégia de tumultuar a fiscalização ambiental. Ele é autodeclaratório e são muito poucas as vistorias feitas para checar quem é o real proprietário. E assim eles obliteram a identidade do responsável pelos crimes ambientais — diz o analista do Ibama Hugo Loss,que atua em diversas operações contra desmatamento na região.

OS TIPOS DE FRAUDES

O atual diretor do CAR,Henrique Dolabella,atribui os problemas nos registros à complexidade do sistema,quantidade de dados — o arquivo principal possui mais de 25 terabytes,equivalente ao espaço necessário para armazenar 6.250 horas de vídeos em alta definição,por exemplo — e a um “desmonte” promovido durante o governo Bolsonaro,quando o gerenciamento do sistema foi transferido do Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura. Um dos exemplos citados desse desmonte foi a redução de barreiras para o registro de fazendas sobre áreas indígenas. No governo Luiz Inácio Lula da Silva,após o Congresso barrar a tentativa de devolvê-lo à pasta comandada por Marina Silva,o cadastro passou a ser de responsabilidade do Ministério da Gestão e da Inovação.

— Estamos trabalhando para colocar dados com padrão ouro. E a partir disso podemos colocar alguns filtros. Mas precisamos ter certeza absoluta do direito de propriedade daquela área (antes de barrar as sobreposições). O nosso compromisso é disponibilizar um modelo de cadastro que seja pré-preenchido inspirado no Imposto de Renda — afirma Dolabella.

A avaliação de técnicos e ambientalistas,é que o sistema só funcionará de forma eficaz a partir do momento em que os estados se engajarem na validação dos registros. Um levantamento feito pela Advocacia Geral da União (AGU) em fevereiro de 2024 apontou que,naquele momento,84% dos cadastros ainda aguardavam uma análise e apenas 1,6% tinham sido cancelados por alguma irregularidade.

— O CAR não é um instrumento centralizado. Ele é unificado a partir de uma central,que é o governo federal,mas com participação direta dos estados. Se uma das partes do mosaico não cumpre com as suas obrigações,o sistema entra em colapso. É o que acontece hoje.

— Herman Benjamin,presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Coordenador-geral do Observatório do Meio Ambiente do Poder Judiciário,Benjamin tem participado de audiências no Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir mudanças no CAR após os partidos PSOL e Rede terem entrado com uma ação. As siglas pedem que o governo federal seja "expressamente" autorizado a suspender "de imediato" os cadastros rurais onde for flagrado desmatamento ilegal.

No mês passado,o relator do caso,ministro Flávio Dino,determinou que os estados da Amazônia Legal e a União elaborem um plano conjunto para fazer uma limpa no CAR,cancelando os registros irregulares. Uma nova reunião foi marcada para 13 de maio.

PROPRIEDADE DESMATADA

Em nota,o governo do Pará,que liderou os índices de desmatamento na Amazônia no ano passado,afirmou que tem realizado "ações como mutirões de regularização e monitoramento remoto de imóveis rurais,com punições para infrações ambientais”. “Desde 2019,mais de 195 mil cadastros foram verificados,com cerca de 22 mil suspensos ou cancelados até março de 2025”,informou a Secretaria do Meio Ambiente do estado.

Mato Grosso,por sua vez,diz que iniciará em maio a análise automatizada dos cadastros. "A previsão é de que todos os cadastros de Mato Grosso sejam analisados de forma automatizada até dezembro de 2025 e que ocorra a validação de 69% dos cadastros privados e 100% dos cadastros em assentamentos rurais",afirma a nota. Enquanto Tocantins informou que adotará um modelo que permitirá mais agilidade para detectar irregularidades. "Esse sistema ampliará a produtividade da equipe técnica,com maior integração entre plataformas e maior capacidade de detecção de inconsistências,como sobreposições e dados cadastrais divergentes,garantindo mais agilidade e precisão nas validações." Também procurados,os demais estados da Amazônia Legal não comentaram.

Para o delegado da PF Alexandre Saraiva,que foi superintendente da corporação no Amazonas e em Roraima,apesar dos problemas,o CAR representa um importante ponto de partida para se combater crimes e tentar organizar a bagunça fundiária no país.

— Não podemos culpar a janela se a paisagem é feia. O cadastro foi fundamental para a maioria das grandes investigações da PF sobre madeira,gado e queimadas ilegais. Isso porque o sujeito grila as terras e as cadastra no CAR,muitas vezes no nome de um laranja,mas a partir daí temos um fio para puxar — resume ele.

(Esta reportagem é um resultado da chamada pública para reportagens jornalísticas baseadas em dados de biodiversidade organizada pelo Instituto Serrapilheira e pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística)

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