2025-12-02
HaiPress
Gerson de Melo Machado na infância e na juventude — Foto: Reprodução
GERADO EM: 01/12/2025 - 23:59
O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
CLIQUE E LEIA AQUI O RESUMO
Debaixo de comoção,foi sepultado nesta segunda-feira no Cemitério do Cristo,em João Pessoa,o corpo de Gerson de Melo Machado,de 19 anos,atacado por uma leoa após invadir a jaula do animal em um zoológico na capital da Paraíba. Só a mãe destituída,Maria da Penha Machado,e uma prima acompanharam o enterro. A mãe,que perdeu o poder familiar há mais de dez anos,hesitou diante do corpo antes de reconhecê-lo no Instituto Médico-Legal (IML). O ritual curto marcou o fim de uma vida empurrada desde cedo para a margem,entre abandono,doença mental e a sucessão de portas que nunca se abriram para Gerson,conhecido como Vaqueirinho.
'Tem uma pecinha aqui que eu preciso': Vídeos mostram ação de PMs presos por atuação durante megaoperação no Rio'Presídio dos famosos': Transferências de Robinho e Brennand ampliam movimento silencioso para diluir a fama de Tremembé
Ele morreu no domingo após escalar as estruturas de proteção do Parque Zoobotânico Arruda Câmara,descer por uma árvore e entrar no espaço dos leões. Ele acessou a área interna sem ser visto e chegou ao território de uma leoa batizada de Leona,que avançou e o atacou imediatamente. O laudo inicial indica mordidas no pescoço e choque hemorrágico. O caso levou a prefeitura a abrir apuração sobre as condições de segurança do parque.

Gerson de Melo Machado,o Vaqueirinho — Foto: Reprodução
A trajetória de Gerson começou a se desintegrar ainda na primeira infância. A mãe,portadora de esquizofrenia,vivia em profunda vulnerabilidade e perdeu o poder familiar de todos os filhos. Gerson era o mais debilitado. A certidão de nascimento dele,que já não tinha o nome do pai,deixou de ter o da mãe quando ele tinha 10 anos. A destituição familiar ocorreu para facilitar uma possível adoção,já que ele estava em casa de acolhimento. Todos os irmãos foram adotados. Segundo Verônica Oliveira,conselheira tutelar que o acompanhou por anos,ele nunca foi cogitado para adoção porque as famílias rejeitam sumariamente crianças com transtornos mentais.
Entenda: Justiça liberta réu por feminicídio após laudo citar infarto da vítima,mas dívida de R$ 40 mil em pensão breca soltura
Sem a chance de ter uma família,Gerson passou a escapar dos abrigos. Aos 12 anos,saiu em busca da mãe,acreditando que um dia ela estaria bem o suficiente para cuidar dele. No entanto,Maria da Penha também lutava contra a esquizofrenia. Ela chegou a levá-lo ao Conselho Tutelar de João Pessoa e,em crise,disse que não conseguia ser mãe e que sua mente adoecida a incapacitava de se sustentar e dar afeto ao filho. Verônica descreve essa relação como duas pessoas frágeis tentando se agarrar uma à outra e sempre derrotadas pelas circunstâncias.

Gerson de Melo Machado,o Vaqueirinho — Foto: Reprodução
O Conselho Tutelar encaminhou Gerson a um abrigo,mas ele escapou mais uma vez. Aos 12 anos,foi encontrado sozinho na beira de uma rodovia. Levado a uma clínica do governo,atestou-se que apresentava comportamentos associados a transtorno psicótico,dificuldade de vínculo afetivo e episódios de desorganização. Equivocadamente,um profissional do complexo psiquiátrico avaliou o caso como simples problema comportamental,quando na verdade Gerson era portador de esquizofrenia,doença diagnosticada mais tarde. A esquizofrenia é um transtorno mental grave que compromete a percepção da realidade,o pensamento e o comportamento. Causa delírios,alucinações e desorganização mental,afetando a capacidade de julgamento e de vida autônoma.
'Nunca matei uma mosca': Aos 65 anos,maior estelionatária do país deixa Tremembé após mais de três décadas presa
A doença veio à tona de forma oficial quando ele tinha 18 anos e respondeu a um processo criminal por ter danificado o portão de um centro educacional onde já havia sido internado. No inquérito e na audiência,ficou registrado que ele agia em surtos,sem compreender plenamente o que fazia. O juiz responsável concluiu que o jovem era inimputável por causa da esquizofrenia e determinou medida de segurança,afirmando que ele não tinha capacidade de entender o caráter ilícito dos próprios atos.

Gerson de Melo Machado com a conselheira tutelar Verônica Oliveira — Foto: Reprodução
Na adolescência Gerson passou longos períodos nas ruas. Dormia em bancos de praça,pedia comida e pleiteava ser adotado por estranhos que passavam. Não conseguia permanecer nos serviços que o acolhiam. A fome era constante. Em mais de uma ocasião,praticou pequenos furtos para comprar comida. Em outras,atirou pedras em carros da polícia para ser preso e conseguir abrigo e refeições. Ele próprio dizia que,quando estava na cadeia,sentia que recebia mais cuidado do que na rua.
Lesadas em mais de R$ 600 mil: Polícia prende idoso acusado de aplicar 'golpe do amor' em sócias de clube de elite em SP
Pouco antes da maioridade,ele tentou violar um caixa eletrônico e acabou detido. Na saída da audiência de custódia,revoltado por ter sido liberado de volta à rua,quebrou uma viatura. Em depoimento,afirmou que quebraria todas se tivesse força para isso,em um discurso desorganizado que revelava o agravamento do transtorno.

Gerson de Melo Machado na infância — Foto: Reprodução
Havia também as fantasias recorrentes. Em um dos episódios mais graves,entrou no trem de pouso de um avião no aeroporto de João Pessoa,tentando viajar clandestinamente para a África,onde dizia que seria domador de leões. O voo atrasou porque a companhia aérea precisou retirá-lo do compartimento. Ele repetia que seria aceito pelos felinos,que lá encontraria um lugar onde não fosse rejeitado e que os animais o compreenderiam melhor do que qualquer pessoa.
Chico Picadinho: Como é a vida do preso mais antigo do Brasil,que vai completar meio século atrás das grades
Dois dias antes de morrer,Gerson procurou o Conselho Tutelar pedindo seus documentos para tirar carteira de trabalho. Queria um emprego. O comportamento alternava momentos de lucidez com falas completamente desconexas. O prontuário dele no Conselho tem quase duzentas páginas e registra sucessivas tentativas de acolhimento,todas interrompidas pela instabilidade,pela esquizofrenia sem tratamento adequado e pela precariedade das redes de proteção.
A avó materna,também com diagnóstico de esquizofrenia,chegou a acolhê-lo em alguns períodos,mas nunca teve condições reais de garantir estabilidade. A estrutura familiar inteira estava quebrada,e o Estado não conseguiu suprir as lacunas.

Gerson de Melo Machado na juventude — Foto: Reprodução